fotografia: Chtcheglov
#54 – Virginia Otten
Nascida em Lisboa, criada em Sintra, aos 18 anos fez as malas e foi viver para a Holanda. Lá aprendeu a língua holandesa, frequentou cursos livres de escultura, desenho, pintura e patchwork. Passou pelo primeiro ano do curso de formação de professores de trabalhos manuais e de História da Arte na Faculdade de Belas Artes de Amesterdão mas as saudades da terra fizeram-na regressar mais cedo. Em 2008 criou a marca portuguesa Amo-te Mil Milhões® que se dedica à criação de brinquedos e acessórios para crianças de todas as idades. Brinquedos que nos dão vontade de pedir para que falem, para que nos abracem, para que façam mesmo parte da nossa vida! Ou não fossem “heart made”! Actualmente vive em Cascais, com o marido e filhos, num pequeno apartamento onde juntos vão crescendo e criando raízes, como os legumes que plantam na varanda.
Diz-me quem é a Virginia vista de fora?
Isso depende de quem me vê! Talvez me vejam como uma eterna miúda sonhadora, que acredita no ser humano e que gosta de viver inspirada, que mantém um blog há oito anos e faz bonecos de pano e mantas de retalhos, que tenta recriar o seu mundo à sua imagem.
És alfacinha de berço, por devoção ou por convicção?
Sou alfacinha de berço. Nasci numa maternidade que já não existe, no Chiado. Há lá sítio mais bonito para nascer? Mas também o sou por devoção. Nasci ali e fora os cinco anos em que vivi na Holanda, mantive-me sempre por perto. Eu sou de Lisboa, Lisboa é minha.
Que projectos tens em mãos?
Como mãe que sou, o projecto maior que tenho em mãos são os meus filhos. Depois, tenho o Amo-te Mil Milhões®, blog e marca registada que criei há quase uma década, onde sou a mulher dos sete ofícios. Há oito anos que trabalho a partir de casa, a fazer o que gosto e espero poder continuar a fazê-lo durante muito tempo. Adoro o meu trabalho.
Agora, sinto que cheguei a um ponto em que já não me basta fazer roupa para bonecas. Ando a aprender a costurar para mim – e para quem quiser – e o objectivo é comprar cada vez menos fast fashion. E depois há um ou dois projectos que estão para sair da gaveta mas que prefiro não revelar.
Como começa a tua relação com a máquina de costura?
A máquina de costura esteve sempre presente na minha vida. Até à adolescência, toda a roupa que eu vestia era feita ali na sala, pela minha avó. O ir à retrosaria escolher tecidos era algo normalíssimo, era o esperado. Eu não ia à loja escolher um vestido, ia à loja escolher um tecido para um vestido. Adorava folhear as Burdas ainda em alemão e escolher os moldes para aquela estação do ano. Quando, por volta dos meus doze anos, começaram a aparecer mais revistas, dei por mim a recortar e a desenhar modelos que me interessavam, enchendo cadernos daquilo sem saber muito bem porquê. Só sabia que me dava um gosto enorme fazê-lo. Anos mais tarde, já a viver no norte da Holanda, fui com uma amiga a um grupo de patchwork e aí fiz a primeira manta de retalhos, ainda à mão. Só em 2002, grávida do primeiro filho, é que decidi comprar uma máquina de costura e desde então nunca mais parei.
Nota-se que criar para ti não é um processo de isolamento, pois partilhas muito desses momentos com os teus filhos. O que esperas que eles aprendam com essa partilha?
Eu trabalho na sala, a um canto perto da janela. Eles crescem com alfinetes e linhas por todo o lado, ajudam a encher bonecos, o barulho da máquina já nem os incomoda (digo eu). Espero que, ao estarem em contacto directo com todos estes materiais, habituados já ao processo que cada peça pede, eles aprendam que nada nasce do nada, que tudo carrega consigo um longo trabalho até chegar às nossas mãos mas que mesmo assim somos capazes de construir seja o que for. E que para além de sermos capazes de fazer tudo aquilo de que precisamos, o processo é agradável, faz-nos bem e faz-nos sentir mais completos, donos da nossa própria vida. Espero que se lembrem sempre das inúmeras profissões que poderão vir escolher ter, para além daquelas que estão por nascer, mesmo que a escola sofra de uma estranha amnésia e se esqueça de incluir no seu currículo artes e ofícios tão válidos como qualquer outra disciplina.
Cada trabalho teu está cheio de atenção, de pormenor e dedicação, é difícil deixá-los partir?
Estranhamente, não. Se calhar devia ficar com certas peças para mim mas sabe bem passar o nosso trabalho para outras mãos. Gosto de pensar que cada boneco leva dentro de si um punhado de amor. É a minha contribuição para um mundo melhor, ainda que possa parecer ingénuo.
Numa era em que tantas vezes se diz “não tenho tempo, não tenho tempo”, sente-se que apelas a que se reduza o ritmo. Será isso essencial para a evolução da Humanidade?
Sem dúvida! A maioria das pessoas corre um ano inteiro para se oferecer quinze dias de descanso longe de casa, longe da sua rotina, longe da vida que leva. Se nos contentarmos com menos luxos, talvez possamos correr menos e aproveitar mais os dias. Uma vida simples não é sinónimo de descanso, pelo contrário. Não ter micro-ondas ou máquina de lavar dá muito trabalho. Mas poder ir buscar os filhos à escola a pé, conversar durante o caminho enquanto se come um gelado, devagar – são trinta minutos de férias por dia que eu não trocaria por nada. Está na hora do ser humano olhar para dentro e reencontrar um novo ritmo – e a correr de um lado para o outro isso é impossível.
Para ti Lisboa é…
Luz, História, a minha Capital.
Se fosses Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, qual seria a tua primeira medida?
Acabava com a miséria na cidade. O termo “sem-abrigo” deixaria de existir. Não pode ser assim tão difícil de conseguir.
O que gostarias de ver em Lisboa na próxima semana, no próximo mês e no próximo ano?
Portugueses felizes. Uma capital europeia tão hospitaleira como a nossa, pronta a receber e a dar o seu melhor, deve, antes de mais, permitir uma vida digna a quem nela vive. Hoje, amanhã e sempre, quero ver uma cidade que se preocupa com os seus velhos, com as suas crianças, com os seus cidadãos. Que defenda também o seu património, material e imaterial, que é imenso.
Lisboa tem prazo de validade?
Não. Mas o chico-espertismo tem, sempre. Neste momento vejo Lisboa numa crise existencial, que prefere ser igual a qualquer outra capital, no medo de não saber acompanhar os tempos. Espero que a sua essência se mantenha intacta, e que ainda se vá a tempo de manter e recuperar casas comerciais que são, por si só, motivo de visita. Lisboa é linda e única e é assim que gosto dela.
Qual é a primeira coisa em que pensas quando regressas a Lisboa?
Casa, berço.
Desejo para 2016?
Para mim, para Lisboa, para todos nós: que nos realizemos!
Sugere-nos outras pessoas dignas da referência “100 Lisboetas que tens de conhecer!”.
A Rita Rueff Lopes. É uma pessoa maravilhosa de quem tenho a honra de ser amiga. Tenho a certeza de que vão gostar de a conhecer.